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Mães à venda: comércio de amas de leite também chegou à Belém

Mãe é única! Será? Houve uma época que se comprava e vendia mães aqui mesmo em Belém. E os anúncios nos jornais do final do século XIX comprovam isso: mulheres eram comercializadas para exercer o papel de mantenedoras e cuidadoras de bebês e crianças. As chamadas amas de leite eram mulheres negras, escravas ou alforriadas, mas também mulheres pobres e algumas migrantes a quem eram atribuídos os cuidados de toda uma geração.

Esse é o tema de pesquisa de dissertação de mestrado de Damiana Gutierres desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Pará (PPGED/UFPA), sob orientação da professora Laura Alves.

Com o título “No colo da ama de leite: a prática cultural da amamentação e dos cuidados das crianças das províncias do Grão-Pará no século XIX”, Damiana Guierres, explica que o “serviço” de ama de leite ia além da amamentação, pois as amas acabavam responsáveis também por criar e educar as crianças em uma época em que a mortalidade infantil assombrava as famílias, e as mães, quase adolescentes, se viam pressionadas a “repassar” o papel de amamentar e cuidar dos filhos menores. Assim nasceu uma cultura que mantém raízes até hoje e que também aconteceu e foi marcante em Belém do Pará.

A cultura segue nos dias atuais - A ideia da amamentação por outras mulheres pode até parecer distante, mas não é. É provável que você já tenha conhecido alguém que foi amamentado por uma ama de leite “moderna”. Mulheres com várias jornadas de trabalho que recebem ajuda de vizinhas, amigas ou parentes na criação dos filhos, por exemplo, ou crianças cuja mãe biológica estava ausente e foram educadas por outras mulheres.

Esse é o caso de Simone Tavares, professora da rede pública. Na mesma época em que ela teve o primeiro filho, sua vizinha adotou uma criança. Simone tinha muito leite, então passou a amamentar as duas crianças. A relação gerou afeto: “ela me chama de tia, sempre me cumprimentava e pedia a bênção”, lembra a professora. Na gestação seguinte, Simone conta que fez doações ao banco de leite e ressalta a importância do ato: “amamentar é sinônimo de amor.”

História das "iai-iás" começou no Brasil Colônia - Já não há mais escravidão ou anúncios de amas de leite no jornal. Mas as histórias dessas mulheres foram resgatadas pela pesquisadora Damiana Gutierres no PPGED/UFPA. E essa história começou lá atrás, no Brasil colonial, quando a segregação racial e o preconceito criados pela escravidão eram a regra.

A tradição começou com a chegada dos colonizadores. As crianças ficavam sob os cuidados das amas de leite quando as mães não possuíam condições físicas de amamentar a criança. Acreditava-se também que não era permitido manter relações sexuais durante a amamentação e que amamentar acarretava no “envelhecimento precoce” do corpo, então as mães passavam essa responsabilidade para as escravas a fim de voltarem ao pleno desempenho de suas funções de esposa. Era comum jovens mulheres iniciarem a gestação de filhos antes dos 15 anos e terem várias crianças em curtos intervalos de tempo.

“Associada a essa realidade, estava uma altíssima taxa de mortalidade infantil. Há pesquisas que indicam que menos de 30% das crianças que nasciam no Brasil no século XIX sobreviviam a primeira infância. O medo de perder os filhos também assombrava os pais e era um empecilho para a formação de laços familiares e do “apego” entre adultos e crianças”, explica Laura Alves, orientadora da pesquisa.

Por isso, as amas eram um investimento na saúde e bem-estar de mães e filhos e também “protegiam” os pais de envolver-se emocionalmente por meio do cuidado contínuo com uma criança que poderia “não vingar”, ou seja, sobreviver.

Aluga-se e alugo-me - Era comum anunciar o serviço de compra, venda e aluguel de amas de leite em jornais da época, como comprova Damiana Gutierres em sua dissertação. A pesquisa analisou um total de 99 referências ao comércio de amas de leite em Belém publicados em oito jornais que circularam na capital do Pará entre 1845 e 1888.

Em Belém, os jornais mostravam o comércio lucrativo de mulheres como amas de leite. Elas eram jovens, entre 16 e 20 anos, e podiam ser vendidas com ou sem “as crias”. As que tinham perdido o filho eram mais valorizadas para o comércio. “A função de ama de leite para os donos de escravos era parte das atribuições possíveis de uma mulher cativa, em prol do seu benefício econômico”, resume a pesquisadora.

No levantamento feito nos anúncios de jornais, a pesquisadora aponta que a partir dos anos de 1850 começou a aparecer um maior número de anúncios de senhoras brancas imigrantes, em sua maioria portuguesas, que se ofereciam como amas de leite, o que pressupõe a valorização econômica da “função” de ama de leite.

“Os anúncios ofertavam vagas para mulheres negras que poderiam ser cozinheira, lavadeira, engomadeira e costureira. Além disso, outras habilidades eram exigidas das amas, tais como; lavar, engomar e cozinhar. No mais, há nos anúncios referências, por exemplo, das informações sobre a saúde da ama, se ela tem filhos e a idade dele. Por fim, informações sobre a pessoa com quem seria feito o negócio e o endereço a ser tratado o acordo”, detalha Damiana Gutierres.

Ama de leite, de status e de cultura - Ter uma ama de leite era sinônimo de riqueza e era costume dar às visitas da casa uma espécie de “cartão de visitas”, contendo uma fotografia da mãe negra com o bebê ou infante. Muitos desenhos e gravuras feitos por artistas da época também registraram essa relação.

De acordo com Damiana, o relacionamento entre os dois personagens era maior do que se imagina: A ama era exemplo de amor e cuidado. Na obra Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, o autor reforça que foi na boca das amas, das ia-iás, bás e mães-pretas que a língua portuguesa foi ensinada às crianças, misturada aos sotaques indígenas e africanos.

Elas inventaram o bicho-papão e o “dodói”- Foram elas, também, que ensinaram as primeiras rezas, cantaram cantigas e contaram contos de assombrações e histórias fantásticas. Foram as amas que criaram o “bicho-papão”. “As amas de leite foram grandes contadoras de histórias”, afirma Damiana.

A educação das crianças incluía contos de raízes africanas, com animais que falavam como gente; e também portuguesas, com heróis, princesas e madrastas. Outra influência foi a língua “amaciada”, presente no vocabulário infantil até hoje: dodói, au-au, pipi, dindinha, entre outros.

Por muito tempo as amas resistiram como melhor alternativa de alimentação. Crendices populares difundiam que o simples fato de contrariar uma ama poderia azedar seu leite e nenhuma mãe arriscaria a saúde do bebê.

Entretanto ainda no século XIX, o avanço de um movimento chamado “higienismo”, que, defendido por médicos, pregava o maior cuidado com crianças a partir de noções advindas da ciência, as amas passaram a ser sinônimo de perigo. As escravas e mulheres pobres que trabalhavam como amas de leite acabaram associadas com a transmissão de doenças e a prática foi sendo combatida progressivamente. Mas as amas de leite nunca desapareceram completamente.

Serviço:
Leia aqui a dissertação “No colo da ama de leite: uma prática cultural da amamentação e dos cuidados das crianças das províncias do Grão-Pará no século XIX”, de Damiana Guierres, orientada pela pesquisadora Laura Alves, do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGED).

Texto: Mariana Vieira e Glauce Monteiro – Assessoria de Comunicação da UFPA
Foto: Reprodução/Google

Publicado em: 13.05.2017 18:00