Doutor em ler diários: pesquisador da UFPA esmiúça o voyeurismo
Quer saber a vida íntima de alguém? Quer entender o contexto de uma época? Quer conhecer como uma sociedade vive e um indivíduo pensa? Simples: leia diários. Foi o que Márcio Couto Henrique, pesquisador do curso de Ciências Sociais e Antropologia da Universidade Federal do Pará, decidiu fazer. Resultado? A tese de doutorado <<Um toque de voyeurismo: o diário íntimo de Couto de Magalhães>>, que alia a curiosidade humana em penetrar na privacidade alheia à relevância histórica do gênero textual diário, como revelador de um indivíduo e de uma época.
O antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira uma vez definiu sua profissão como a de <<bisbilhoteiro profissional>>, em outras palavras, um voyeur (palavra francesa que significa expectador). Na psicologia, voyeurismo é uma desordem sexual do indivíduo que se detém em espreitar pessoas nuas ou em ato sexual. Em um sentido mais geral, contudo, voyeur é aquele que observa. Esse é o conceito que a palavra apresenta na tese de Márcio Henrique, <<como referência ao trabalho do pesquisador de diários íntimos, que transforma a intimidade alheia em curiosidade científica>>, ele mesmo enfatiza.
Além do toque de curiosidade, o título da tese chama atenção também pela expectativa sobre as possíveis revelações que um diário pode conter, em especial se forem informações relacionadas à sexualidade de seu autor. O pesquisador explica que <<a constituição da noção de privacidade, que se desenvolveu na sociedade moderna, a partir do século XVI, fez com que acreditássemos que em um diário íntimo o sujeito escreve toda a sua verdade, ele se revela por inteiro, na medida em que supostamente ele escreve apenas para si mesmo>>.
Ao longo dos quatro anos de seu doutorado, Márcio Henrique conta que, quando ministrava palestras sobre o tema, era grande o interesse do público, ainda mais sobre os sonhos eróticos e a hipocondria de Couto de Magalhães. Por mais que tenham dificuldade em admitir, as pessoas têm curiosidade de ler as anotações alheias, de descortinar a intimidade dos outros. Isso mostra o quanto o voyeurismo é atual, seja no sentido de um olhar curioso, seja como desordem sexual. O autor explica que <<Big Brother, blogs e Orkuts são exemplos de ‘diários’ atuais que ratificam a idéia de exposição e invasão de privacidade>>.
Registro individual de uma época
Até o século XIX, escrever diários era uma prática predominantemente masculina, em que o homem moderno criava estabilidade e consistência para si mesmo a fim de conviver melhor com a idéia de um <<eu>> incompleto e finito. <<O diário funcionaria como um suporte, como o fio da meada que permite ao autor encontrar e reencontrar o caminho que ele escolheu para si mesmo>>, aponta Márcio Couto. Ele ainda acrescenta que um diário não é um simples relato do que aconteceu, mas um retrospecto das experiências vividas pela pessoa, suas impressões e reflexões acerca da realidade presenciada. <<O autor de diário é, na verdade, o editor de sua própria vida, na medida em que ele escolhe o que deve ser lembrado, registrado, e o que deve ser esquecido>>, complementa.
Assim aconteceu com José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), mineiro da cidade de Diamantina. Ele começou cedo sua vida política: aos 25 anos já era presidente da província de Goiás. Posteriormente, governou mais três províncias brasileiras: Pará (1864-1866), Mato Grosso (1866) e São Paulo (1888-1889). Participou da Guerra do Paraguai, que lhe rendeu o título de brigadeiro honorário do Exército. Entre um discurso político e uma ação militar, escrevia em seu diário. Mas por que, mais de um século depois, seus escritos foram retomados pela curiosidade científica de Márcio Henrique?
O diário de Couto de Magalhães se configura como anotações sobre um estilo de vida próprio que levanta diversas questões pertinentes à sociedade em que viveu. Ao explicitar aspectos de sua intimidade, Magalhães revelou um período da história brasileira. E foi por isso que seu diário virou objeto de estudo para o doutorando. <<O que me interessa é discutir de que maneira a intimidade revelada de Couto de Magalhães nos permite compreender melhor o mundo em que ele vivia, qual a dimensão social do registro íntimo de um personagem específico>>, explica o pesquisador.
Sexualidade, modelo de família, construção de heróis nacionais, corpo, saúde e doença são alguns temas abordados pelo político e que mostram, além do seu ponto de vista, a sociedade brasileira do século XIX. <<Do início ao fim, o <Diário Íntimo> expressa um tipo de sensibilidade dissonante com o que se convencionou chamar de moral da época. Escrevendo sobre si mesmo, Couto de Magalhães evidencia o processo de educação das necessidades e das atividades corporais em muitos homens à época. Registra a leitura de temas como homossexualismo, sonhos, casamento e Medicina>>. Analisá-los é de fundamental importância, pois se tratam de questões que ainda vigoram na atualidade.
Acrescida à relevância histórica dos escritos do político, Márcio Henrique também se interessou pelo diário porque já tinha uma trajetória de pesquisa sobre Couto de Magalhães, desde a sua especialização
Márcio Couto Henrique apresentou a tese Um toque de voyeurismo: o diário íntimo de Couto de Magalhães, no último dia 25, às 14:30 h, no Auditório do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, na Universidade Federal do Pará. O doutorando teve a orientação da professora doutora Jane Beltrão. Em consideração a quem se interessou por sua tese, ele a disponibilizou, mesmo antes da defesa, no site http://www.ufpa.br/ppgcs/arquivos/Um_toque_de_voyeurismo-tese.pdf (copie e cole em seu navegador). A apresentação foi aberta ao público.
Texto: Suzana Lopes – Assessoria de Comunicação Institucional da UFPA
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