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Leia a íntegra do parecer da Procuradoria-Geral sobre o sistema de cotas adotado na UFPA

Parecer nº 1156/2005/MCO-PG/UFPA
Processo nº 022.889/2005
Interessada: Reitoria da Universidade Federal do Pará
Assunto: Sistema de cotas


Magnífico Reitor,

Trata o processo em epígrafe do encaminhamento dessa Reitoria para que esta Procuradoria Geral se manifeste a respeito do questionamento sobre a decisão do Conselho Superior de Ensino e Pesquisa (CONSEP), desta Universidade Federal do Pará (UFPA), que estabeleceu normas para o acesso de estudantes egressos da escola pública, contemplando cota para negros, aos cursos de graduação desta Instituição Federal de Ensino Superior (IFES).

O encaminhamento referido pretende manifestação ampla sobre a matéria, suas implicações jurídicas e outras decorrências, considerando inclusive as questões levantadas publicamente por movimentos estudantis, pais de alunos e sociedade em geral, inclusive imprensa.

É oportuno registrar que a matéria não foi, até este momento, objeto da análise e manifestação desta Procuradoria Geral.

 1 – A Resolução nº 3.361/2005.

A referida decisão foi tomada no dia 5 de agosto de 2005, através da Resolução de nº 3.361/2005, que tem apenas dois artigos com o seguinte teor:

“Art. 1º Fica aprovada a reserva de 50% (cinqüenta por cento) das vagas dos cursos de graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA), oferecidas no Processo Seletivo Seriado (PSS) a estudantes que cursaram todo o Ensino Médio em escola pública.
§ 1º Do percentual de vagas a que se refere o caput deste artigo, no mínimo, 40% (quarenta por cento) serão destinadas aos candidatos que se declararem pretos ou pardos e optarem por concorrer ao sistema de cotas referente a candidatos negros.
§ 2º A reserva de vagas a que se refere o caput deste artigo terá vigência por um período de 5 (cinco) anos, ao final do qual será avaliado.
Art. 2º A Universidade Federal do Pará assume o compromisso de estabelecer uma política de permanência aos candidatos que nela ingressarem conforme esta Resolução”.

A Resolução acima, surgiu em virtude de proposta da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação e Administração Acadêmica (PROEG), chamada de “Proposta de Ação Afirmativa da Universidade Federal do Pará de Integração de Grupos Étnicos”, acompanhada de minuta de resolução, encaminhada à apreciação do plenário do Conselho Superior de Ensino e Pesquisa (CONSEP), sugerindo a reserva de vinte por cento (20%) das vagas dos cursos de graduação oferecidas na seleção de ingresso na UFPA aos estudantes negros, em todos os seus cursos, por um período de dez (10) anos.

O Conselho Superior de Ensino e Pesquisa (CONSEP), em reunião realizada no dia 5 de agosto de 2005, conforme ata em anexo, após longa e exaustiva discussão, decidiu, por unanimidade, que cinquenta por cento (50%) das vagas dos cursos de graduação, ofertadas pela Universidade Federal do Pará (UFPA), serão destinados a estudantes egressos de escola pública e que, desse percentual, quarenta por cento (40%) serão reservadas para estudantes autodeclarados pretos ou pardos, por um período de cinco (5) anos.

2 – A questão das ações afirmativas

    A destinação de cotas como instrumento de inclusão social tem se mostrado uma questão polêmica e a Universidade Federal do Pará (UFPA) foi um das  primeiras instituições do Norte e Nordeste a implementá-la.

   A proposta de cotas para alunos da escola pública, nessas inclusas as destinadas aos negros, faz parte das chamadas políticas de ação afirmativa, que são políticas que visam ampliar o acesso de minorias discriminadas a determinados setores sociais. A idéia discutida,  a partir de uma visão de solidariedade, é a de mininizar as desigualdades sociais. Defende-se que essas políticas tenham caráter transitório. Daí que a decisão da UFPA é válida inicialmente por cinco anos.

   As chamadas ações afirmativas procuram oferecer tratamento diferencial àqueles que vêm sofrendo derrotas seculares na luta pelos bens sociais (empregos, vagas em universidade, etc.), ou seja, estipulando cotas para as minorias sociais.

     As ações afirmativas são, portanto, uma oportunidade de enfrentar certas injustiças sociais no presente, atacando o problema social da exclusão por discriminação e resultando, conseqüentemente, em um fim social útil.

   Por fim, nas presentes considerações, faz-se mister a discussão, mesmo que rápida, sobre a necessidade da observância dos princípios de igualdade e dignidade da pessoa humana consagrados na Constituição Federal, diante da adoção de ações afirmativas que visam minimizar alguns problemas sociais decorrentes de diferenças que historicamente vêm desigualando as pessoas humanas.

3 – Os princípios jurídicos constitucionais

   As normas jurídicas não se esgotam nas regras, mas admitem uma outra categoria: os princípios jurídicos. Os princípios jurídicos integram o direito, como normas jurídicas que são, e consubstanciam valores morais considerados socialmente relevantes, incorporados ao sistema de direito. Os princípios fundamentais, como direito, ou razão para decidir, encontram na Constituição Federal previsão expressa ou implícita.

  Enquanto as regras jurídicas estabelecem determinações e aplicam-se segundo o critério - ou tudo ou nada -, expurgando-se do sistema os enunciados em conflito, os princípios jurídicos, em tese, são harmônicos entre si. Entretanto, é possível que, na aplicação ao caso concreto, ocorra contradição entre eles. Nesse caso, a questão se resolve tendo em vista o peso ou densidade que um ou vários princípios apresentam em contraposição aos outros, que lhe fazem oposição. Especialmente nos casos difíceis é que os princípios jurídicos surgem como fundamento informador e conformador da solução que se busca construir.

    A Constituição Federal, em seus artigos 3º e 5º, traça alguns dos princípios fundamentais, ao estabelecer:

   “ Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
    III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
    IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

   ”Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”

   Da conjugação dos mandamentos constitucionais é possível observar que a Lei Maior prestigia, não a igualdade meramente formal, mas a igualdade substancial, pois, se de um lado pela própria condição de humanidade nascemos com idêntico grau de dignidade, de outro é patente a vergonhosa muralha sócio-econômica que separa alguns, dos muitos excluídos.

   Sobre o tema Celso Antônio Bandeira de Mello, assevera:
   “Não basta pois, poder-se estabelecer racionalmente um nexo entre a diferença e um conseqüente tratamento diferençado. Requer-se, demais disso, que o vínculo demonstrável seja constitucionalmente pertinente. É dizer: as vantagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando situações conotadas positivamente ou, quando menor, compatíveis com os interesses acolhidos no sistema constitucional.”

   A tese é, portanto, que o princípio da igualdade não é justo se aplicado aos desiguais. Assim, pode-se notar que a isonomia almejada na Constituição Federal autoriza tratar as pessoas iguais de modo idêntico e as diferentes entre si, de forma diferenciada.

   Com esta interpretação, pode-se considerar que o sistema de cotas, ora adotado pela UFPA, não configura de modo algum uma iniciativa inconstitucional.

4- A competência da UFPA para estabelecer o regime de cotas.

   As universidades gozam de autonomia didático-científica e administrativa, na forma do art. 207 da Constituição Federal.
   Demais disso, no exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízos de outras, a atribuição de fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio (Lei nº 9.394/96, art. 53, IV).

   Portanto, por mais polêmica que seja a matéria, não vemos nesse processo nenhum impedimento jurídico. Ao contrário, o princípio jurídico da autonomia universitária apresenta, no caso concreto, peso significativo. Deve a academia ser farol de vanguarda da sociedade, articular o ensino, a pesquisa e a extensão para gerar, na esteira das idéias e da realidade, produtos significativos capazes de apontar para a melhoria da qualidade de vida, especialmente das populações locais. Somente uma Universidade verdadeiramente autônoma pode alçar a bandeira da solidariedade e da minimização das desigualdades sócio-econômicas, políticas e culturais. Portanto, fazer valer o princípio da autonomia universitária, em todas as suas formas de manifestação, é, no mínimo, lutar por alterações positivas na realidade atual.

5 – A adoção responsável de políticas públicas

   É relevante considerar que qualquer decisão administrativa, é sempre vinculada, na forma do art. 37, da Constituição Federal, aos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. Da legalidade, contudo, decorrem outros princípios constitucionais implícitos, como os da finalidade e da razoabilidade.

   Com efeito, cumprir a lei é realizar os fins a que ela se destina, é, pois concretizar, em última instância, princípios fundamentais socialmente consagrados e, por isso, juridicizados. Por outro lado, a decisão administrativa não pode ser desacompanhada de racionalidade, estabelecendo uma relação equilibrada entre os custos individuais ou sociais que dela podem advir, com os benefícios que dela se espera para a realização do interesse público.

  Nessa perspectiva, a UFPA ao estabelecer a política de cotas, assumiu a responsabilidade de fixar uma política de permanência aos candidatos que nela ingressarem por esse sistema. Ainda, a reserva de vagas foi aprovada com vigência temporária, por um período de cinco anos, devendo passar por profunda avaliação no curso desse interstício.

6 - O Processo Seletivo Seriado (PSS)

   O Processo Seletivo Seriado (PSS)  é o concurso público para ingresso anual aos cursos de graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA), em conformidade com as diretrizes curriculares nacionais. É realizado em três fases, por meio de provas uniformes para todas as áreas, a serem aplicadas em quatro dias, na forma das normas expedidas pelo Conselho Superior de Ensino e Pesquisa (CONSEP).

   As provas referentes a cada fase do PSS correspondem, respectivamente, a disciplinas integrantes das três séries do ensino médio. Pode ser realizado em até três anos consecutivos.

   Os procedimentos para inscrição no PSS abrangem três fases. Na primeira fase inscreve-se o candidato que esteja cursando ou tenha cursado a primeira série do ensino médio. Nas primeira e segunda fases, cumulativamente, pode inscrever-se o candidato que esteja cursando ou tenha cursado a segunda série do ensino médio. O candidato que tenha cursado a terceira série do ensino médio poderá inscrever-se, cumulativamente, nas três fases.

  O domínio desses procedimentos será relevante quando da análise da aplicação do sistema de cotas .

7 – O problema da aplicabilidade da Resolução nº 3.361/05.

   Em face do exposto e examinado, surge a questão relevante que consiste na definição relativa ao momento da aplicabilidade das regras contidas na Resolução nº 3.361/05.

  Revisitando os princípios jurídicos da finalidade e da razoabilidade, percebe-se que a norma editada pela UFPA tem em mira a integração, à Universidade, de segmentos da sociedade historicamente discriminados, mas de forma responsável, por meio de uma política adequada de permanência dos candidatos, até então não formulada.

  Desse modo, não há como conceber a aplicabilidade total e indiscriminada do sistema de cotas, já no PSS de 2006. Com efeito, considerando a sistemática do Processo Seletivo Seriado, como já explicitado, implementado desde janeiro de 2004, tal procedimento resultaria em mudar as regras do jogo, no curso da partida, pois, atualmente, há estudantes que já foram submetidos e classificados em exames da primeira etapa e outros das primeira e segunda etapas, sem o regime de cotas. Alguns, como prevê a Resolução nº 3.351/05, podem desistir das provas já realizadas e, há, ainda, aqueles que, já fora da escola, irão se submeter a todas as etapas neste ano. Alterar as regras do certame nesse momento fere, no mínimo o princípio da igualdade.

8- Novamente o princípio jurídico da igualdade.

   A Resolução nº 3.361/05 em momento nenhum estabeleceu sua aplicabilidade integral no PSS 2006. Ao contrário, cautelosamente, os membros do CONSEP estabeleceram medidas de razoabilidade, aptas a estabelecer na UFPA tratamento justo, reconhecendo as diversidades e fixando ações concretas de redução das desigualdades sociais.

   Ensina Celso Antônio Bandeira de Mello que: “Não se podem interpretar como desigualadas legalmente certas situações, quando a lei não haja “assumido” o fator tido como desequiparador. Isto é, certas circunstâncias ocasionais que proponham fortuitas, acidentais, cerebrinas ou sutis distinções entre categorias de pessoas não são de considerar.” E, em seguida, completa: “ Contudo, se a distinção não procede diretamente da lei que instituiu o benefício ou exonerou de encargos não tem sentido prestigiar interpretaçãoque favoreça a contradição de um dos mais solenes princípios constitucionais”.

   Nessa perspectiva, entendo que a Resolução nº 3.361/05 tem aplicabilidade gradativa, com inicio no PSS de 2006, mas aplica-se, única e exclusivamente, aos alunos à primeira fase, excetuando-se, consequentemente, todos os candidatos às demais etapas, inclusive aqueles que prestarão exames para todas as três fases do PSS. Com isso, a primeira turma a ingressar na UFPA, totalmente sob o regime de cotas, será a do PSS de 2008.

9 – À guisa de conclusão
 
   Em face de todo o exposto e examinado, à guisa de conclusão, pode-se afirmar:
   1 – A Resolução nº 3.361/05, do CONSEP, estabelece o sistema de cotas como política de ação afirmativa, visando a inclusão de minorias historicamente discriminadas.
    2 – As regras estabelecidas pela Resolução nº 3.361/05 concretizam os princípios jurídicos da dignidade da pessoa humana, da justiça social e da igualdade e, como tal, encontram fundamentam constitucional.
   3 – Nos termos do artigo 207 da Constituição Federal e da Lei nº 9.394/96, a Universidade Federal do Pará é competente para fixar sua política institucional de cotas.
    4 – A UFPA adotou, de forma responsável, o sistema de cotas, ao assumir o compromisso de fixar uma política de permanência aos candidatos que nela ingressarem.
   5 – A aplicabilidade da Resolução nº 3.361/05 deve ser gradativa, iniciando com o PSS 2006, para os alunos, unicamente, da primeira fase e completando seu ciclo em 2008, com a entrada na UFPA da primeira turma sob o regime de cotas.
É o parecer, smj
Belém, 08 de setembro de 2005.
Maria Cristina Cesar de Oliveira
Procuradora Geral da UFPA
  

Publicado em: 03.09.2005 13:59